A hipótese de que a leitura se dá de forma natural e facilmente para todas as crianças não é exatamente verdade. Um número muito grande de meninos e meninas muito inteligentes passa por sérias dificuldades no processo de leitura e escrita, não por sua própria culpa, mas por uma dificuldade lexical que vai culminar em uma enorme frustração e baixa autoestima. Essa dificuldade prolongada e persistente de aprender a ler e escrever se chama dislexia.
A maior parte das crianças deseja aprender a ler, e de fato o faz rapidamente, mas para crianças disléxicas a experiência é bem diferente, exigindo muito esforço, parecendo estar bem acima do seu alcance. São crianças que entendem a palavra transmitida oralmente, mas não conseguem decifrá-las quando escritas no papel. Os professores se questionam sobre o que eles ou seus alunos podem estar fazendo de errado, e, na maioria das vezes, por não saberem pré-diagnosticar, acabam responsabilizando a criança para se eximirem de alguma culpa, rotulando-a como preguiçosa, relaxada, desatenta, desmotivada e, finalmente, atribuindo a culpa aos pais, que por sua vez se sentem frustrados ou até mesmo irritados por não saberem lidar com a situação.
É exatamente para estes pais e para estas crianças que estou escrevendo este artigo e espero ajudá-los a entender que, ao contrário do que parece, a dislexia não é uma doença, mas um caminho neural diferente, que requer cuidados e forma especializada de ensino para melhor resultado no aprendizado.
Hoje é possível apontar para uma imagem do funcionamento interno do cérebro e dizer: “É aqui que está a raiz do problema!” É possível saber exatamente a causa da dislexia.
Essas descobertas funcionais do cérebro só foram possíveis a partir de 1980, por meio de observações de cérebros saudáveis feitas por cientistas através de tomografia de pósitrons (PET) e imagens por ressonância magnética funcional (fMRI), possibilitando o mapeamento dos sistemas neurais e seu funcionamento. Através dessas imagens, foi possível identificar três conexões cerebrais para leitura de crianças e adultos. Esses caminhos estão sendo estudados pela Dra. Sally Shaywitz, da Universidade de Yale (EUA) e indicam dois caminhos para leitura: um para quem está começando ler com verbalização lenta das palavras (região parietotemporal), e outro, mais rápido, para quem já lê bem (região chamada de ociptotemporal). Essa região de intensa atividade atua como núcleo de onde as informações vindas de diferentes sistemas sensoriais convergem e todas as informações relevantes de uma palavra – sua aparência, seu som e seu significado – são armazenadas.
Ao serem examinados cuidadosamente esses dois caminhos de ativação cerebral, percebeu-se uma falha nesses circuitos para os leitores dislexos, que criam como compensação um terceiro caminho neural. Estudos realizados em todo o mundo não deixam dúvida de que os leitores disléxicos usam caminhos diferentes. Quando leem, os bons leitores ativam sistemas altamente interconectados que incluem regiões das partes posteriores e anteriores do lado esquerdo do cérebro. Já os disléxicos utilizam o lado direito do hemisfério cerebral e a área de Broca, que fica no hemisfério esquerdo cerebral. Essa interconectividade altera todo o sistema cognitivo causando um déficit de aprendizado, que em casos mais severos, pode chegar até quatro anos, para a assimilação da leitura e escrita.
Após 30 anos na área do ensino e 20 anos de laboratório na elaboração de duas metodologias (Acrescer e PSI – Processo Seletivo de Informação), onde dediquei muitas horas de estudos em neurociência, acredito que indivíduos disléxicos utilizam uma massa de substância cinzenta que liga os tálamos dos hemisférios esquerdo e direito, chamada de massa intermédia, como caminho de entrada para áreas sensoriais corticais primárias e de associação do lado direito, dificultando a padronização de comunicação entre partes especializadas na linguagem, necessárias para o reforço do aprendizado. Entendemos ser essa conectividade intertalâmica a causa da dislexia, que, por sua vez, manifesta sintomas que acabam transtornando a vida dessas crianças em vários aspectos.
A palavra dislexia vem do grego. DIS significa dificuldade, e LEXIA, linguagem. Esse foi o primeiro termo genérico utilizado para designar vários problemas de aprendizagem, e em seu devido tempo, com o intuito de descrever as diferentes formas de transtornos de aprendizagem, esses problemas foram subdivididos e classificados em aproximadamente 70 nomes que são usados para descrever sintomas específicos de dificuldades cognitivas. Por essa razão, podemos chamar a dislexia como “a mãe dos transtornos de aprendizado”.
Citaremos a seguir alguns nomes que ajudarão na identificação de alguns dos sintomas que dificultam a criança em seu processo cognitivo. O termo cognição quer dizer, literalmente, “conhecimento”, e para os neurocientistas comportamentais implica a habilidade de responder a estímulos, sejam externos ou internos, identificá-los e planejar respostas significativas para cada um deles. Começaremos com a disortografia, que é a dificuldade mais comum no disléxico, manifestando-se, exatamente, na pré-escola, quando a criança inicia o processo de alfabetização com a identificação das letras; sua forma e som. A criança disléxica encontra dificuldade de identificar as letras e escrevê-las, trocando as letras de palavras sonoramente parecidas como: faca/vaca, porta/borta, reais/errais. Encontram também dificuldade em expor suas ideias através da escrita, com erros de acentuação, pontuação, omitindo ou acrescentando sílabas as palavras e geralmente tem um nível pobre de vocabulário.
Já a disgrafia é uma dificuldade na caligrafia, com letras mal grafadas, borradas, incompreensíveis. A dislalia caracteriza-se pela dificuldade de articular as palavras faladas, pronunciando-as de forma errada, omitindo ou acrescentando letras ou até mesmo sílabas, como por exemplo, balata/barata, troncamão/contramão, Atelântico/Atlântico. A disfasia é um transtorno que pode trazer um atraso no tempo de aquisição da fala e dificuldade na percepção e expressão da linguagem, na comunicação e na formulação do pensamento.
Dispraxia é a dificuldade de planejamento de qualquer sequência de movimentos coordenados, seja na fala (gagueira), amarrar sapato, andar desajeitado, dificuldade de movimentos rápidos, falta de dominância lateral (confusão entre direita e esquerda).
A distimia caracteriza-se por um rebaixamento crônico de humor irritadiço, alteração de sono, apetite, diminuição da disposição física, memória e baixa autoestima.
Déficit de atenção é a dificuldade de manter a atenção em um objetivo central, para discriminar, compreender e assimilar o estímulo. A dificuldade de atenção pode manifestar-se isolada ou associadamente a uma linguagem corporal que caracteriza a hiperatividade ou, opostamente, a hipoatividade.
TDAH – Transtorno do déficit de atenção e hiperatividadeé o trio combinado dos sintomas da desatenção, impulsividade e hiperatividade. Na infância a criança pode ou não ter dificuldades na escola, mas com certeza apresenta problemas nos relacionamentos com as demais crianças, quase sempre achando que o problema é dos outros, sentindo-se sempre perseguido e injustiçado. Também é considerada como “avoada”, que vive “no mundo da lua”. Geralmente é tachada de “estabanada”, “ligada por um motor”, isto é, não para quieta por muito tempo e geralmente tem dificuldades com regras e limites.
Um dos sintomas bem característicos da dislexia, é o fato de a criança esquecer com facilidade aquilo que aprendeu em poucas horas, dias ou semanas, e às vezes ter mais facilidade de transmitir o que sabe através de exames orais. É comum também essas crianças não gostarem de ir à escola, principalmente por terem de manter um maior nível de concentração por muitas horas. É bom lembrar que para o disléxico, uma hora de leitura equivale a quatro horas e isso traz um cansaço mental, o que causa certo desconforto e irritabilidade.
Quando não diagnosticadas e acompanhadas por profissionais especializados através de programas e terapias, é provável que essas crianças carreguem consigo, até a fase adulta, uma dificuldade de se organizar e cumprir seus objetivos, se tornando inconstantes, não conclusivas, colocando em risco seu futuro profissional, relações sociais e familiares.
É possível que nem todos os sintomas citados anteriormente vão estar presentes na vida de pessoas disléxicas, mas, apenas seis deles, de forma constante e continuada, já é o bastante para se considerar uma dislexia.
Até aqui, todos os comprometimentos, sem dúvida, podem ser vistos de forma negativa, mas, o mesmo fator que causa a dislexia é o que desenvolve uma forma perceptiva muito especial, podendo tornar o disléxico altamente sensitivo e inteligente, ou seja, sintomas comprometedores e sintomas excepcionais de funcionamento do cérebro estão localizados exatamente do lado direito do hemisfério. É a superativação deste lado, que pode desenvolver um dom perceptivo que com certeza poderá convergir, se bem explorado, para uma inteligência brilhante como a de Albert Einstein, Thomas Edson, Walt Disney, entre outros mais, que se destacaram por serem surpreendentes em suas áreas de atuação. Para estes, e muitos outros, a dislexia não foi um transtorno, mas um dom especial, que os tornaram mais inteligentes que a média. Os comprometimentos e as dificuldades que certamente existiram foram enfrentados por eles de tal forma, que o que ficou evidenciado foi uma inteligência surpreendente, levando-os a serem reconhecidos mundialmente pelos seus grandes feitos.
É bom lembrar que diagnosticar não possibilita alterar a forma como esse cérebro geneticamente está organizado em seu funcionamento, mas permite a busca de ajuda, que será muito bem vinda, de profissionais especializados e de programas como do PSI (Processo Seletivo de Informação), que tem como objetivo repor conteúdos antes não assimilados, observando e respeitando o tempo dos circuitos neurais de integração e solidificação para o aprendizado através da plasticidade, que é a habilidade de mudar através de exercícios neurais o aprendizado diário. O programa do PSI pode ser introduzido a partir dos 9 anos de idade, pois nesta fase a maturação do córtex pré-frontal se acelera com progressivo aperfeiçoamento, possibilitando melhor compreensão das ideias abstratas, permitindo o aprendizado por reforço negativo (aprender por meio dos erros). Através do programa, os caminhos neurais serão automatizados conforme as etapas e desafios vão sendo vencidos e, desta forma, os alunos, além de aprender, tornam-se autodidatas, apresentando melhoras no sistema de leitura, interpretação de texto, produção de texto, correções ortográficas, operações matemáticas e raciocínio lógico. Também é possível diagnosticar um aumento no nível de concentração e organização, consequentemente, uma melhora significativa na autoestima. Alunos com quadro de agressividade e brigas regulares desenvolvem um nível maior de socialização obedecendo mais as regras e limites, como consequência de exercícios que estimulam as conexões e integrações das redes neuronais.
Para crianças em idade pré-escolar, 1º, 2º e 3º anos, o trabalho deve ser realizado por uma equipe multidisciplinar, através de pedagogos, psicólogos, fonoaudiólogos, até que seja possível um trabalho compartilhado com outras crianças em programas como o PSI.
Os resultados obtidos nos dão cada vez mais a certeza de que vale a pena investir em crianças disléxicas, porque elas certamente serão as cabeças inteligentes de amanhã. Afinal de contas, atrás de grandes empreendimentos, projetos e invenções no mundo, quase sempre encontramos um cérebro disléxico.
Qual a razão desse atraso?
Quando a criança ouve pela primeira vez um nome, o padrão neural auditivo é transmitido da área de Werneck para a área de Broca via fascículo arqueado. A área de Broca eventualmente adquire as regras para transformar a palavra ouvida em forma falada. Estas três estruturas são partes essenciais das rotas do sistema de linguagem, principalmente para a repetição falada. Para algumas crianças a aquisição da leitura depende da ligação entre a palavra vista e a ouvida, ou seja, entre o giro angular e a área de Werneck, sendo o giro angular de extrema importância para compreensão da leitura e escrita.
Já a criança disléxica utiliza outro padrão neural, ou seja, um terceiro caminho, o lado direito do cérebro e a área de Broca, ignorando a área de Werneck, giro angular e fascículo arqueado, que são muito importantes para o desenvolvimento do processo de linguagem.
*Nancy Martins de Sá Stoianov, doutora em Filosofia da Educação e Metodologias de Ensino, pela Los Angeles University (USA), Doutora Honoris Causa da Iberoamerica, e integrante do Conselho Iberoamericano; diretora-executiva da ABBA (Associação Batista Beneficente e Assistencial), diretora da Clínica Ágape. Autora da “Metodologia Acrescer” e do método PSI (Processo Seletivo de Informação)
Publicado em 01/11/2010